Depois de um hiato de quase quatro anos, o Guia Michelin está de volta ao Brasil – e em grande estilo. A nova edição, com a seleção de restaurantes estrelados em São Paulo e no Rio, será anunciada na próxima segunda-feira (20) durante cerimônia no Copacabana Palace.
Criado pela empresa de pneus homônima em 1900 como um pequeno guia para encorajar mais motoristas a pegar a estrada, hoje ele virou um ícone: ter o reconhecimento das estrelas Michelin é sinônimo de excelência na gastronomia. Já são cerca de 30 mil estabelecimentos em mais de 30 países diferentes, avaliados por inspetores anônimos – que visitam os restaurantes sem alarde, nem anúncio, e retornam mais de uma vez ao ano para garantir que o nível de qualidade foi mantido.
"A maioria deles estudou nas melhores escolas de hotelaria do mundo, viajou bastante ou viveu e trabalhou em vários países", descreve um porta-voz do guia sobre seus avaliadores.
Em clima de retomada brasileira, relembramos a seguir uma entrevista de 2019 com um dos inspetores Michelin, feita pela Forbes US por email – tudo para proteger sua identidade, sem sequer revelar seu gênero. Confira:
Não foi uma decisão direta. Sempre amei comida, a indústria da hospitalidade e, particularmente, o mundo dos restaurantes. Trabalhei tanto na cozinha quanto no salão de restaurantes. Tive uma carreira extensa trabalhando nos departamentos de alimentos e bebidas de alguns hotéis de luxo em Nova York. Sempre tive consciência do Guia Michelin e sua importância na comunidade culinária. Soube da oportunidade de me tornar um inspetor através do escritório de serviços de carreira da escola de culinária que frequentei. Foi uma oportunidade incrível que se apresentou e fui compelido a ir atrás dela.
Leia também:
O treinamento é extenso. Inicialmente, fiz dupla com os inspetores seniores e os acompanhei em refeições durante meses. Esta foi uma oportunidade para entender o que eu deveria observar e avaliar. O treino aconteceu no meu mercado local com a equipe local, mas também incluiu tempo com inspetores seniores na França e no Reino Unido. Mesmo como inspetor estabelecido, tive a oportunidade de trabalhar e aprender com meus colegas no Japão. E, mais recentemente, passei um tempo em Seul aprendendo sobre (e experimentando) a culinária coreana.
Inspetores viajam até três semanas em um mês e comem fora até 10 refeições por semana.
Esta é uma ótima oportunidade para esclarecer muita confusão sobre o Guia Michelin. Muitas pessoas acham que o guia é “envolto em mistério” ou “misterioso”. Talvez isso venha dos inspetores, que foram notoriamente anônimos por cerca de cem anos. A razão para as inspeções anônimas é simples: queremos validar a mesma experiência que qualquer outro cliente terá no restaurante para que possamos fornecer uma opinião confiável para nossos leitores. Mas o Guia Michelin é transparente sobre a estrutura de classificação, que se concentra apenas na comida do prato desde o início: qualidade dos ingredientes; domínio da técnica; harmonia dos sabores; a assinatura única do chef; e consistência ao longo do tempo. Se a culinária não atender ao julgamento do inspetor em qualquer um desses critérios, o restaurante não receberá uma estrela – ainda que possa merecer uma distinção Bib Gourmand ou Plate. E não se esqueça, cada Guia Michelin é uma seleção, não uma lista telefônica. Achamos que é um grande reconhecimento ser incluído. Mundialmente, o Guia Michelin inclui cerca de 15 mil restaurantes em 32 seleções, mas apenas cerca de 10% são reconhecidos com estrelas.
Um inspetor visita um restaurante várias vezes durante um ano para validar a consistência – consistência em todo o menu e ao longo do tempo. Validar um estabelecimento no nível de duas ou três estrelas geralmente requer visitas adicionais de outros inspetores de outras regiões, que trarão expertise especial à discussão. Temos inspetores que se especializam em culinária coreana, por exemplo. Um inspetor da Coreia pode viajar para Nova York para validar as estrelas para restaurantes nessa categoria, e também podemos enviar certos inspetores para a Coreia para avançar em sua compreensão da culinária local.
Leia também:
Cada Guia Michelin tem sua própria personalidade e evolução. As flutuações entre as seleções estreladas são, na maioria das vezes, resultado de mudanças de chefs ou de um negócio que fecha. Às vezes, infelizmente, a qualidade da culinária cai. Os inspetores levam cada decisão sobre uma estrela (seja uma concessão ou uma retirada) muito a sério, porque respeitamos o tempo e a energia que esse chef dedica ao domínio do ofício. Mas, no fim das contas, devemos fornecer uma opinião honesta, precisa e confiável aos nossos leitores – muitos dos quais dependem do Guia Michelin para tomar decisões sobre onde gastar seu dinheiro em viagens e experiências gastronômicas. Se você acompanhar os guias de perto por um período de tempo, verá uma progressão natural de talentos que se expande em todos os mercados: chefs jovens que se destacam em restaurantes de duas e três estrelas muitas vezes se tornam chefs de seus próprios restaurantes de uma ou duas estrelas mais tarde. O talento prolifera, para o benefício da economia local.
Ao escolher uma refeição, os inspetores consideram várias questões: Quais itens do menu melhor representam o que torna o estabelecimento especial ou único? Quais itens são a melhor expressão da declaração que o chef está se esforçando para fazer com sua culinária? Quais itens tornam esta sala de jantar icônica ou lendária? Quais itens são uma representação autêntica do tipo de culinária? O que faz uma refeição excelente? Ao considerar um restaurante para uma possível estrela, estamos atentos a cinco critérios principais: a qualidade dos produtos apresentados na refeição; o domínio da técnica culinária demonstrada; a harmonia dos sabores; a personalidade do chef expressa na culinária; e a excelência consistente experimentada entre visitas de vários inspetores.
As seleções de estrelas são validadas através de um processo "colegial": um grupo diversificado de inspetores de várias regiões globais é responsável por confirmar as estrelas concedidas em cada edição.
Essa é uma pergunta absolutamente apropriada. Claro, temos que nos certificar de fazer exercícios (andar ou subir escadas quando possível é meu mantra pessoal), monitorar nosso consumo de álcool, escolher sabiamente, variar os tipos de culinária (limitar refeições consecutivas de foie gras) e tentar manter uma rotina.
O anonimato é fundamental para o emprego de um inspetor Michelin. E manter o anonimato em um mundo onde as pessoas divulgam publicamente todas as suas ações e interações é um desafio.
eia também:
Sim, alguns inspetores no passado descreveram o trabalho como a CIA, mas com comida melhor. Claro, os inspetores têm vidas e relacionamentos, então cabe a eles [decidir] em quem podem confiar. Pessoalmente, minha família sabe o que eu faço.
Fonte: Forbes Brasil